Angela Ro Ro deixa grandes e eternas canções com a voz rouca e a tristeza que o amor lhe deu na ‘vida louca vida’
08/09/2025
(Foto: Reprodução) Angela Ro Ro (1949 – 2025) deixa obra sensível ao morrer aos 75 anos na cidade natal do Rio de Janeiro (RJ)
Reprodução / Facebook Angela Ro Ro
♫ OBITUÁRIO
♬ “Não há princípio que resista ao fim”
O verso de Não há cabeça (1979), primeira música de Angela Ro Ro gravada em disco, no caso pela também estreante Marina Lima no álbum Simples como fogo (1979), fez sentido na manhã desta segunda-feira. Angela Maria Diniz Gonsalves (5 de dezembro de 1949 – 8 de setembro de 2025) – sim, Gonsalves, com o ‘s’ no lugar do ‘ç’ exigido pela norma gramatical – morreu aos 75 anos na cidade natal do Rio de Janeiro (RJ), no Hospital Silvestre, onde estava internada desde julho para combater infecção no pulmão.
A morte da cantora, compositora e pianista carioca acontece dois dias após a estreia do show em que Maria Bethânia celebra 60 anos de carreira com duas músicas de Ro Ro no repertório, Gota de sangue e Mares da Espanha, esta até então inédita na voz de Bethânia, uma das cantoras que ajudaram a projetar a música da então debutante Ro Ro em 1979, ano de revolução feminina na MPB.
♬ “Não há cabeça que o coração não mande”
Mix improvável de Maysa (1936 – 1977) com Janis Joplin (1943 – 1970), Angela Ro Ro viveu guiada pela emoção que sempre se sobrepôs à razão. Foi a que “tudo sentiu, disse e fez”, como sintetizou em outro verso de Não há cabeça, a música que revelou na voz de Marina a obra que Ro Ro vinha compondo desde 1974 enquanto se apresentava em casas noturnas do Rio de Janeiro (RJ).
Muitas vezes imersa em turbulências emocionais, Ro Ro falava o que lhe vinha à cabeça e, se muitas vezes saiu do tom na vida louca vida, na música foi uma das cantoras mais afinadas e expressivas do Brasil em todos os tempos com a voz rouca que lhe valeu o apelido de Ro Ro.
Se não fosse a compositora que se revelou extraordinária no primeiro álbum, Angela Ro Ro (1979), mas que depois perdeu impulso, poderia ter sido somente uma grande intérprete, como atestam as gravações de músicas alheias que pontuam a discografia da artista, como Bárbara (Chico Buarque e Ruy Guerra, 1973), gravada por Ro Ro em 1980, e All the way (Jimmy Van Heusen e Sammy Cahn, 1957), standard norte-americano que abordou em disco ao vivo de 1993.
♬ “ Não há bebida que beba a saudade”
Angela Ro Ro bebeu todas na maior parte da vida e ardeu na fogueira das paixões, embora tenha adotado postura mais saudável nos últimos anos por questão de sobrevivência. Disse ter comido todas, e o fato é que a artista foi a primeira cantora famosa da MPB a se assumir lésbica, logo assim que apareceu, em 1979. Tampouco escondeu a orientação sexual nas músicas de títulos já assumidos como Tola foi você (1979) e Gata, moleque, ninfa (1984). Nesse sentido, merece reverências por ter derrubado barreiras e aberto caminhos para que outras mulheres lésbicas também se posicionassem na mídia, como Zélia Duncan.
♬ “Eu fui, eu vim do desamor morrendo”
Angela Ro Ro se acalmava danando. A irreverência mascarava muitas vezes a dor da alma da artista e essa intensidade regeu a música de Angela Ro Ro, compositora de obras-primas do cancioneiro brasileiro como Balada da arrasada (1979), Cheirando a amor (1979), A mim e a mais ninguém (parceria com Sérgio Bandeira, de 1979), Só nos resta viver (1980), Fogueira (1983) e Cobaias de Deus (parceria com o irmão de alma Cazuza, de 1989), além, claro, de Amor, meu grande amor (1979), o maior sucesso, parceria com Ana Terra revitalizada pela banda Barão Vermelho na década de 1990.
Nesse cancioneiro composto com sensibilidade e poesia, a artista harmonizou o lamento desesperado do blues, a atitude do rock, o suingue do boogie e a melancolia dramática do samba-canção.
♬ “Não há rancor que o perdão não esqueça”
Angela Ro Ro nunca foi politicamente correta. Falava o que pensava e, por isso, arrumou muita confusão, inclusive no meio artístico. Mas todos acabavam rendidos ao humor ácido da artista e a perdoavam. Tanto que a notícia da morte de Ro Ro já provoca série de homenagens nas redes sociais. Famosos e anônimos se unem no lamento pela partida desta artista que entrou em cena em 1971, na Inglaterra, precisamente em estúdio de Londres.
É que Ro Ro tocou gaita em participação (não creditada na ficha técnica) na gravação da música Nostalgia (That's what rock'n'roll is all about) (Caetano Veloso), faixa que encerra Transa (1972), o segundo álbum gravado por Caetano Veloso no exílio amargado na capital da Inglaterra. Foi o cineasta Glauber Rocha (1939 – 1981) quem indicou Ro Ro a Caetano.
♬ “... E essa tristeza que o amor me deu é a coisa mais bonita dentro do meu”
Angela Ro Ro carregava uma melancolia que nem o humor ferino conseguia dissipar. Sem essa tristeza, talvez não tivesse embebido de sensibilidade o repertório que abasteceu álbuns como Só nos resta viver (1980), Escândalo (1981), Simples carinho (1982), A vida é mesmo assim (1984) – o álbum mais coeso da artista depois do imbatível e nunca superado disco de estreia de 1979 – e Eu desatino (1985), título mais fraco da safra discográfica inicial.
Sim, ela desatinou, como assumiu já no título do sexto álbum. Tanto que, depois de 1985, nunca mais retomou o pulso inicial da discografia, acrescida eventualmente de títulos menores como Prova de amor (1988), Acertei no milênio (2000) e Selvagem (2017), último álbum de discografia pontuada por alguns registros de shows, sendo que Nosso amor ao armagedon (1993) e Angela Ro Ro ao vivo (2006) sobressaem na seara das gravações ao vivo.
Não há mesmo princípio que resista ao fim?...
Sim, há alguns. O nome e a obra de Angela Ro Ro transcenderão a finitude do corpo da artista. Ficarão as músicas e as lembranças eternas do que as viram em cena, em clima de cabaré, em shows de voz e piano, às vezes o dela, para felicidade do espectador, pois Angela punha alma no toque do instrumento que começou a aprender na infância, mas quase sempre o do fiel escudeiro Ricardo MacCord.
A vida louca vida de Angela Ro Ro pode ter sido errante em alguns momentos, mas foi sobretudo bela. A ela, só restou vivê-la. E, a nós, resta a partir de hoje cultivar a memória de uma das grandes cantoras e compositoras da música brasileira.